sábado, 23 de janeiro de 2021

Vidas Opostas

"O sonho da igualdade só cresce no terreno do respeito pelas diferenças".

Augusto Cury, escritor.

Quer saber como foi minha vida de fazendeiro europeu aos 30 anos?

O texto abaixo foi escrito há seis anos e meio, em ocasião da minha viagem ao leste europeu. Durante as cinco semanas que passei na Sérvia, tive bastante tempo livre e escrevi, a mão, como estava sendo a viagem por lá. Resolvi reler as 11 páginas agora no ano novo e achei melhor publicar o mais parecido possível com o jeito que escrevi, pois, quando fiz esse blog, pensava em poder voltar aqui anos depois, pra reler e ter um tipo de contato comigo mesmo – como eu pensava, como eu agia, como eu era anos e anos atrás. E eu tive um pouco dessa sensação enquanto reli o relato abaixo. Dividirei-o em dois textos: este, falando mais sobre a vida no interior da Sérvia, em Farkarždin, lugar tão pequeno que nem quando digito seu nome do Google eu encontro; e o do mês que vem sobre a capital, Belgrado. Digitar este relato agora foi muito legal de se fazer, porque pude perceber como era meu pensamento aos 30 anos e o que mudou ou não de lá pra cá. De vez em quando farei observações atuais e aí elas virão entre colchetes. A hospedagem e comida do tempo que passei lá foi de graça, em troca de eu fazer serviços braçais (leves) pra minha anfitriã, uma senhora de 64 anos na época, um esquema de troca de favores que descobri no site https://www.helpx.net/. Dê uma olhada depois.

Alguns serviços não foram tão leves assim. Continua lendo.

Belgrado - Sérvia

Meu primeiro dia na Sérvia não foi agradável. Já começou mal em Rijeka-Croácia, quando eu perdi o ônibus pra cá. Não entendi aquilo até hoje. Eu estava esperando na plataforma que me mandaram esperar. 30 minutos depois do horário que ele deveria ter chegado eu resolvi perguntar no guichê. Me disseram pra não me preocupar. Era um ônibus “em trânsito”, que vinha de Pula (Croácia) e que poderia se atrasar mesmo. 20 minutos depois eu perguntei de novo e aí me disseram que ele já tinha ido. Não sei como ele passou na minha cara sem eu perceber. Mas eles tinham uma solução – pagando mais 100HRK (kunas croatas = R$15,00) eu poderia embarcar num outro ônibus que estava pra sair. Aceitei e cheguei a Belgrado quase 6h da manhã (550km de viagem). O ônibus não tinha banheiro, mas fez duas paradas para isso e para lanche e outra parada na fronteira Croácia-Sérvia, pra gente descer e carimbar o passaporte.

Fronteira Croácia - Sérvia

Ao chegar a Belgrado, Bojana (leia-se “boiâna”) minha anfitriã, não atendia ao telefone. Comprei um cartão pra telefone público, mas não consegui usá-lo em nenhum telefone. Liguei pra ela do celular de um daqueles caras que ficam na rodoviária com colete fluorescente. [Devia ser carregador de mala, não sei] Eu tinha pedido ajuda a ele, que me ofereceu seu telefone. Como ela não atendia, mandei mensagem SMS. Agradeci a ele pela ajuda e ele me fez um gesto indicando que eu deveria agradecer com gorjeta. Ofereci todas as minhas moedas de kunas, porque eu queria economizar meus dinares, dinheiro sérvio. Ele recusou as moedas e pediu notas. Ofereci a de 10 kunas, ele recusou de novo, achando pouco, mas eu achei que era o bastante por uma mensagem de texto (R$1,50). Ele e o amigo estavam me pressionando tanto que eu me senti intimidado e com a obrigação de pagar pelo favor. Praticamente me arrastaram até uma cabine de câmbio que havia ali perto e eu troquei uma nota de EUR10,00 por dinares. Entreguei uma parte a ele, mas ele não aceitou receber dentro da casa de câmbio e me pediu pra sair. Ofereci pra ele não me lembro quanto agora. Ele continou dizendo que era pouco, mas aí eu insisti na mesma quantia até ele aceitar e ir. [Talvez eu tenha dado o correspondente a uns R$20,00. Me lembrando disso, não acreditei que eu pude ter sido tão otário. Já devia ter deixado ele falando sozinho logo no início].

Fachada da casa onde fiquei hospedado no interior

Em seguida, Hermín, um jovem de uns 20 anos, se aproximou, disse que tinha visto tudo de longe e que eu não deveria confiar naquela gente. Eu disse que achei que ele estava apenas sendo legal, como um italiano foi comigo no aeroporto de Trieste: ao perceber que eu não conseguia usar o telefone público, ele me ofereceu o celular e eu fiz uma ligação de uns dez minutos para empresa aérea Lufthansa (pra Itália mesmo), para mudar a data do meu voo de volta pro Brasil. No fim, eu perguntei a ele quanto custava aquela ligação e ele disse que não era nada. [Nossa, aquele cara foi um anjo mesmo]. Hermín disse que na Sérvia era diferente, as pessoas não eram tão amigáveis como nos outros lugares e que eu jamais deveria confiar num taxista nem naqueles caras dos coletes fluorescentes. Aí ele me emprestou seu celular e mandamos mais uma mensagem para Bojana, avisando que eu tinha chegado.

Uma das belezas de Farkarždin.

Fiquei a manhã inteira sentado na rodoviária esperando por ela sem ter a certeza de que ela tinha visto as mensagens de celular ou o email enviado dias antes. De um posto telefônico, liguei novamente e ela atendeu. Esperei até as 16h. A abracei, mas percebi que ela não gostava de ser tocada. Fomos até um posto policial registrar minha chegada ao país, pois é preciso fazer isso nas primeiras 24 horas em território Sérvio. [Hoje em dia, o procedimento continua pra todos os estrangeiros que não ficam hospedados em hotel. Caso você fique em um hotel, os funcionários já fazem isso pra você – informação dada por Thiago, brasileiro que mora lá e é dono da agência “Bem Vindo à Sérvia”] Em seguida, fomos ao apartamento onde eu fiquei hospedado. Ali, eu recebi minha primeira tarefa. Fiquei cinco horas limpando apenas o quarto, que, segundo ela, não estava tão sujo (!). O apartamento, quitinete, na verdade, estava imundo. Parte da noite foi limpando só o quarto, que era conjugado com a cozinha. Fiquei o dia seguinte todo com o nariz escorrendo e espirrando por ter removido todo o pó. E ela ainda falou que eu deveria ter limpado o banheiro primeiro, porque o quarto não estava tão sujo. [Na lógica dela, fazia mais sentido o lugar onde você toma banho ser a prioridade na limpeza e não o lugar onde você dorme] Ela não ficou no apartamento, mas voltou pra vila, pois a casa da vila nunca podia ficar sozinha, por causa dos bichos.

Jardineiro, minha outra função na casa.

A Sérvia tem aproximadamente 7 milhões de habitantes, dos quais 1,5 milhão estão na capital federal, Belgrado. A moeda é o dinar. Na época da minha visita, em junho de 2014, R$1 = EUR3,30 e 1EUR = 115RSD. Então, pra pensar o quanto eu gastava, eu dividia o preço por 100 e multiplicava por três. Era mais fácil do que dividir por 34. Por exemplo, uma plieskavitza com uma porção de batata fritas e uma lata de Coca custavam 300RSD. Então, eu estava gastando R$9,00 por aquela refeição. Plieskavitza é um sanduíche preparado à moda turca. Bom, mas mais gostosos são o burek, a pita de espinafre e a baklava de nozes. [Aqui no Brasil mesmo são coisas fáceis de se encontrar em restaurante árabe. Descobri depois que morei em São Paulo] Só digo que os três são de massa folhada, como quase tudo lá. Eu quase sempre comia em padaria (pekara em sérvio; leia-se “pêcara”) e já entrava pedindo a baklava orah (de nozes).

Pastor da vila


Farkarždin

Igreja católica

No dia seguinte, pela manhã, fui de ônibus para a pequena vila de Farkarždin (leia-se “farcárchidin”, com R tipo em “caro” e D como em “dado”) , aprender quais seriam as minhas obrigações lá. Ao chegar à parada, mais um imprevisto: os dizeres dos ônibus estavam em cirílico, então eu tive de deduzir muito rápido, pelas vogais, o ônibus que iria a Farkarždin. Acenei e confirmei com o motorista. Aí eu vi como uma pessoa analfabeta se sente. E fiquei imaginando se teria a mesma sensação quando visitasse a China, ou Japão, ou outro lugar que não usa o mesmo alfabeto que o nosso. [Que delícia foi reler esse trecho, pois, cinco anos depois, em 2019, eu estive no Japão, China, Rússia e Emirados Árabes, todos países com alfabeto que não entendo e que me trouxeram de volta a sensação de não ser alfabetizado]

Na Sérvia, ambos os alfabetos, cirílico e latino, são usados. As crianças começam aprendendo as letras que são iguais nos dois; depois seguem se desenvolvendo nos dois e aí escolhem qual usar. Na televisão, os canais usam apenas um deles. Só existe dublagem pros desenhos animados. Tudo é legendado, até as novelas turcas, que me surpreenderam – pareciam tão bem feitas quanto as novelas da Globo.



O alfabeto cirílico também era terrível quando eu queria comer. Não dava pra entender nada do cardápio. Se bem que, no início, mesmo no latino eu não entendia nada. Acabava escolhendo tudo pelo visual mesmo, até descobrir a baklava orah, uma espécie de torta de nozes mil folhas. Quase tudo lá é de massa folhada. Se não fossem as aulas de dança que fiz e as longas caminhadas, eu teria engordado mais.

Cemitério em Farkarždin

Farkarždin é uma pequena vila com menos de 2000 habitantes [a não sei quantos km de Belgrado, porque não a achei no Google Maps, mas eram menos de 2 horas de ônibus]. Lá, eu tive de alimentar os dois cachorros, dois gatos e seis galinhas duas vezes por dia; cortar a grama dos quintais da frente e do fundo; carregar um mato já meio seco do pomar para o rio. Limpar a casa não me foi pedido, mas eu não consegui evitar. Era muita imundície para uma pessoa que, contraditoriamente, sempre tinha de lavar as mãos quando chegava em casa. Ela elogiou meu trabalho, mas disse que tinha bagunçado (!) o banheiro depois de eu ter limpado e separado todos os objetos por categoria no armário. Disse que agora não conseguia achar as coisas.

Fiz serviços de costura também.

No meu ponto de vista, meu único erro foi com o tapete da sala que era grande e pesado: enrolei-o levei pra fora. Não tinha rodo, então eu o limpei com vassoura e sabão em pó e deixei secando no sol por três dias, mas houve chuva. Então eu voltei com ele pra sala ainda úmido, o que causou mal cheiro que não disfarçava nem com os incensos que acendi. E algumas partes dele ficaram marrom, com aparência mais suja. Ela me xingou horrores, porque ela tinha me explicado pra limpar com uma esponja úmida, dentro da sala mesmo. Claro que eu ignorei porque eu não achava q seria suficiente e eu queria tirar todo o pó daquele lugar. Daí, segundo ela, agora eu deveria passar o paninho úmido no tapete todos os dias, até o cheiro sair. Fiz só uma vez, porque ela estava em casa, me olhando.

Teve um dia que as crianças se ofereceram pra me ajudar

Quando ela foi visitar sua família em Montenegro, país vizinho, por mais de uma semana, levei o tapete pra fora, joguei água e detergente e usei o rodo que comprei em Belgrado e que ela falou que era um objeto de limpeza inútil, que eu poderia levar pro Brasil. O cabo quebrou logo no começo da lavação e eu fiquei puxando aquela água de quatro até o rodo quebrar mais. Secou no sol por dois dias, joguei vinagre e deixei por mais um dia e coloquei na sala de novo e o cheiro saiu, mas umas manchas continuaram. Fiz um vídeo que mostra o estado da casa, mas já estou me sentindo culpado demais por expor uma pessoa assim. [Só publico isso pra mostrar como existem modos totalmente diferentes de ver o mundo e que o “certo” pra algumas pessoas não é “certo” pra outras. E isso vale pra muitos outros conceitos relativos que teimamos em encarar de forma objetiva]

Não me lembro do nome do que usa camisa do Brasil.
Os outros são Veljko e Dusan.

Bojana tinha um comportamento muito contraditório. No supermercado, ela sempre pegava os produtos do fundo da prateleira, porque os primeiros “ficam cheios de poeira levantada pelo caminhar das pessoas”. Ao chegar em casa, ainda limpava-os com um pano e fazia várias atividades de luva. Não andava em casa com os mesmos sapatos que usava na rua. Não gostava que a abraçasse para tirar fotos. Ao mesmo tempo, vivia numa imundície.

Bojana e eu na principal praça de Zrenjanin.

Nós só dividimos o mesmo teto três noites, porque ela deixava eu ficar em Belgrado quando ela estava em Farkarždin. A casa de campo é que não poderia ficar vazia, por causa dos bichos. Ao mesmo tempo em que eu a achei grossa ao falar comigo, ela tinha algumas atitudes legais. Ela quis saber sobre o Brasil, me levou para passear em Zrenjanin (leia-se “zreniânin”) um dia – na verdade, ela tinha de ir lá de qualquer jeito, mas me mostrou um pouco a cidade. E ela me autorizou a colher as cerejas do seu pomar, vendê-las na feira e ficar com o dinheiro. [Muito bom ler isso seis anos depois, porque minha memória registrou apenas o lado ruim da pessoa; hoje pude me lembrar do lado bom]. Vendi 6kg da cereja doce (tresnja) a 80 dinars o kg (lucro de uns R$8,00) e só não vendi mais porque eu já tinha comido horrores dela.

Aproveitando a safra das cerejas.

Na semana seguinte, a venda da cereja azeda (visnja) foi um fracasso. Me puxei, acordando às 5h da manhã pra colher, fui com pelo menos uns 10 kg e não vendi nada, mesmo sendo 40 dinars/kg. O povo nem experimentou. Aí fui obrigado a beber 1 litro de suco de cereja por dia. Mesmo assim, foi bom pra eu me distrair um pouco em Farkarždin, porque não havia nada pra fazer lá. À noite, eu assistia a Friends, Big Bang: a Teoria e mais um filme, tudo com som original e legendas em sérvio, o que me ajudou a aprender um pouquinho do idioma.

Fazendo renda extra na Sérvia.

Um dia saí andando por todas as ruas e em três horas eu já tinha andado por tudo. Aí me envolver com as tarefas da casa acabava sendo uma terapia. Carregar mato era repetitivo, mas eu pensava sobre muita coisa, acabei até montando coreografia de Zumba enquanto trabalhava. No fim da tarde, eu ia pra quadra da escola, porque o povo ficava lá jogando futebol. Eu só arrisquei ficar no gol um dia e nunca mais. Acho que eles devem ter ficado decepcionados com o brasileiro perna de pau. Em compensação, nos divertimos muito na aula de palavrões em sérvio que eles me deram. [Me lembro de vários até hoje]

Prijateljstvo: "amizade", em sérvio

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