terça-feira, 30 de abril de 2013

Pé na Cova

“La muerte los mira silenciosamente. Paz Del cementerio, del lado, de enfrente.”
trecho de La vida y la muerte, poesia de Susana Espósito.

Metrópole ou Necrópole?
Rufina era uma jovem que, no dia do seu aniversário de 19 anos, descobriu que seu namorado era também amante de sua mãe. O peso da notícia a faz sofrer um ataque do coração e morrer. A menina foi velada, levada para a Recoleta, e seu caixão foi colocado dentro de outro féretro de mármore, que foi soldado. A avó de Rufina viajava e, ao saber da morte da neta, pegou um navio da Europa até Buenos Aires, mas não conseguiu chegar a tempo para o funeral, porque, na época, 19eseiláquanto (mil novecentos e sei lá quanto), o transporte e a comunicação não tinham a velocidade de hoje. Desde o momento que recebeu a trágica notícia, a senhora tinha a sensação de que a neta vivia. Ao chegar a Argentina, inconformada, exigiu ver a neta, mesmo depois de enterrada, tão forte era seu pressentimento. A família atendeu seu desejo, e todos tomaram conhecimento de algo mais terrível do que o falecimento da menina. A avó estava certa em sua previsão e agora via o corpo da neta todo revirado e com arranhões nas mãos. A menina vivia quando fizeram o serviço funerário. Era cataléptica. É por isso que, ao visitar o Cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, e olhar para o sepulcro de Rufina, verá uma moça segurando uma fechadura, com expressão vencida, e sem demonstrar força com a mão, pois ela sabe que tentar abrir a porta já é inútil.

Que meeeeeda!!!
Há muito tempo a palavra necrópole era mais usada que cemitério. Pois na Recoleta o nome cairia muito bem se ainda fosse esse. O cemitério (palavra de origem grega que significa dormitório) é como uma cidade, cada via recebe um nome e todos os túmulos têm número. Os números não ficam no túmulo, mas num mapa localizado à entrada, onde é possível localizar o falecido a partir de seu sobrenome, usando a lógica do jogo batalha naval. Como seria para achar Evita Perón, por exemplo, que é o túmulo mais procurado? Procura-se por Duarte, que é seu sobrenome de solteira, e se nota que está no quadrante M-5 (não é esse; inventei agora só para exemplificar). Olhamos ao lado esquerdo, na letra M, e acima, no número 5. Cruzamos as informações e chegamos ao quadrante onde o túmulo dela está. Aí é só andar até lá. Durante a procura, é normal ver pessoas perdidas tentando encontrá-la, porque sempre a procuram por Perón, sobrenome de casada.
Todos querem visitar Evita.
O túmulo dela é o único que tem flores novas 24 horas por dia, todos os dias do ano, e está em um corredor estreito, que se torna de difícil acesso, se há um grupo de turistas. Todos se amontoam para ver e fotografar. O engraçado é ver as pessoas sorrindo ao serem fotografadas ao lado da catacumba; já os discretos e respeitosos ligam o desconfiômetro e fazem expressões dramáticas ao posarem com a ex-primeira dama, que finalmente conseguiu descansar em paz, depois da saga por que seu corpo passou até poder ter sossego no campo santo da Recoleta. Seu cadáver, que tinha sido embalsamado, foi roubado em 1955 pelos militares que tomaram o governo Perón em golpe de estado. Tal atitude de desrespeito com a falecida foi devido ao temor que o corpo da mãe dos pobres virasse um objeto de idolatria pelos seguidores de Perón.
O país parece viver em luto eterno pela "mãe dos pobres".
“Por fim, Pedro Aramburu, novo presidente empossado, delegou ao coronel Carlos Koeing a missão de sepultá-la secretamente. Ao invés de cumprir sua missão, o bizarro militar escondeu o corpo em diferentes lugares até que o instalou em seu escritório. Em pouco tempo, o oficial fora afastado e um plano de remoção do corpo fora montado. A chamada “Operação Traslado” enterrou a defunta na Itália com o pseudônimo de Maria Maggi de Magistris. Ao longo da década de 1960, a população argentina desconfiava da versão oficial de que o corpo de Evita tinha sido destruído. Em 1970, o presidente Aramburu foi sequestrado por jovens peronistas que exigiam informações sobre o cadáver da idolatrada “Madre Mía”. O presidente se recusou a revelar o paradeiro e acabou sendo executado pelo grupo. No ano de 1971, o governo argentino resolveu entregar o corpo para Juan Perón, que se encontrava exilado na Espanha. Em 1973, com o retorno da democracia, Perón venceu as eleições e deixou o corpo de Evita em terras espanholas. Inconformados, os peronistas realizaram o sequestro do corpo do ex-presidente Aramburu e exigiram que a idolatrada figura voltasse ao país natal. No ano seguinte, Juan Perón faleceu e o governo argentino foi assumido por Isabel Martínez, que compunha a chapa como vice-presidente. Ela mesma tratou de colocar Evita ao lado de Juan Perón, na residência presidencial de Olivos. Em 1976, um novo golpe militar tomou a Argentina e mudou os destinos de Evita. Visando acabar com a boataria, o novo regime entregou o corpo às irmãs de Evita Perón. Até hoje, o corpo de Evita se encontra depositado no Cemitério Recoleta, alvo de várias peregrinações.” Fonte: http://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/o-corpo-de-evita.htm.

Enquanto Evita tem todas as atenções, outros têm o abandono.
Se você não estiver com paciência para ouvir as aventuras derradeiras de algum moribundo, pode ir ao local apenas para apreciar o acervo de belíssimas esculturas que adornam os túmulos:
Recoleta é praticamente um museu a céu aberto.
 
Impossível não imaginar as histórias por trás desse mármore de carrara.
O temor da morte e de tudo que a ela é relacionada torna uma visita a um cemitério algo inimaginável para algumas pessoas, mas essa foi pra mim uma experiência enriquecedora e até divertida - Achei um túmulo com o sobrenome da minha família (a foto está em outra publicação que fiz sobre Buenos Aires). A curiosidade maior é poder enxergar os caixões. No Brasil e em vários países, os féretros estão sempre escondidos debaixo da terra ou atrás de paredes de mármore ou granito. Na Recoleta, vários são visíveis, através das portas de vidro ou das grades de ferro que fecham os mausoléus. Alguns túmulos são chamados de Banelco, porque o seu aspecto moderno que eles têm, mais quadrados, sem marquise, e com muito vidro, lembram um caixa eletrônico.
Quer entrar e conferir seu saldo de pecados?
O lugar é lindo, mas eu não gostaria de passar a eternidade em nenhum cemitério, mesmo que fosse um dos mais famosos do mundo. Que bom que hoje as pessoas pararam de acreditar que o espírito só continua vivo se o corpo estiver bem conservado, como se acreditava no Egito. Que bom que se tem usado cremar e depois jogar as cinzas no mar, nas montanhas, numa forma mais poética de se praticar o desapego - uma forma que não é a mais barata, mas mais inteligente de se aproveitar espaço, principalmente em cidades que crescem rápida e desordenadamente. Desperdiçar terras com mortos, a meu ver, é bobagem. Por outro lado, a cremação polui. Se algum parente meu ler isso, quero que saiba que eu prefiro que atirem meu corpo a animais selvagens ou que o doe a alguma universidade federal. Assim, mesmo morto, terei alguma utilidade, seja como alimento ou objeto de estudo.
"Não quer entrar e tomar uma xícara de café?"
Essa visita guiada foi feita duas vezes: na primeira vez que estive em Buenos Aires, em janeiro de 2012, e na sexta vez, em fevereiro de 2013. Os passeios com guia são diários e gratuitos, é só você checar a que horas ocorrem. Aproveite e visita a Igreja do Pilar, ao lado. Para o museu anexo à Igreja é preciso pagar R$5,00. Tive sorte de não pegar a mesma pessoa como guia, porque o que uma deixou de me falar, foi complementado pela outra, e vice-versa. O exemplo mais gritante foi o do caso da moça enterrada viva, relatado na abertura deste texto. A mulher que me guiou na visita no ano passado narrou o caso com uma emoção e uma riqueza de detalhes que deixou a todos tocados com o fato. Já a mulher que nos guiou agora, de cara já falou que a "história" de Rufina não passa de Estória, acabando, assim, com a comoção que tomava conta da minha vida há mais de um ano. Não sei se foi melhor ou pior ela ter falado que eu fiquei um ano acreditando numa lenda. Tem umas coisas que conseguem se manter vivas mesmo sem existirem.