segunda-feira, 23 de abril de 2012

Acampamento Legal

"Bloguear o seu trajeto, Átila, não seria algo como subir num púlpito frente à congregação e dizer que a vida é bela? Pergunto-me aos meus botões: reunir vinte amigos (que o momento de sua vida lhe oferece) num espaço e lhes apresentar uma exposição ilustrada com interações, regado com agrados ao paladar e cabeça, não lhe daria um retorno mais emocionante?"
 Ian guest, músico e amigo
Alunos da Escola Estadual Clemente Pinto, em Caxias do Sul
Quando a sugestão acima me foi dada, fiquei muito a fim de realizá-la. Aí, no início deste mês, a minha amiga Gisele me perguntou se eu gostaria de dar uma palestra aos seus alunos do 9º ano sobre a minha viagem aos Estados Unidos. Aceitei o convite e, poucos dias antes, ela me disse que eles já estavam loucos com a “aula diferente” que teriam. Ian tinha razão. Eu também me sentia entusiasmado por haver pessoas tão interessadas em conhecer uma história minha, comigo falando cara-a-cara. Agora eu poderia acompanhar a reação deles ao ouvirem minha história. Se riam, se se emocionavam, se ficavam entediados, todas essas sensações eu também tinha ao mesmo tempo, diferente do agora, em que meus dedos tocam o teclado e a única reação que recebem são as das linhas que são geradas no documento Word, enquanto abro e fecho mil abas no Internet Explorer, e revejo fotos da viagem, como chocolate, faço mil coisas ao mesmo tempo, sem dar a devida atenção a uma delas direito.
Trabalhar em outro país, num lugar com uma visão dessa, foi a realização de um sonho.
Foram seis meses de preparação para a viagem de intercâmbio. Em janeiro de 2008, eu só sabia que iria trabalhar em algum acampamento como monitor de crianças, mas não sabia onde. Aguardava a resposta da funcionária do YMCA que me recrutou, Rizzia Froes (rfroesymca@hotmail.com), enquanto corria atrás de fazer meu passaporte e dos documentos para apresentar na entrevista do consulado. Devido ao grande número de brasileiros ilegais nos Estados Unidos, os americanos acham que quase todo mundo que vai pra lá não quer voltar mais, por isso, na entrevista do visto, apresente o maior número de documentos que provem seu vínculo com o Brasil. Os melhores são: registros de imóvel e/ou veículo em seu nome; carteira assinada; matrícula em universidade; extrato de uma poupança bem gorda. Consegui o meu visto na minha primeira ida ao consulado acredito que por ser estudante universitário na época e de ter boa fluência em inglês. Isso tudo feito, era só comprar a passagem rumo ao acampamento Frost Valley, em Claryville, a 120 milhas de Nova York. “Tá bom, e quanto é isso em quilômetros?” Sei lá, uns 180... Ih, nem tinha embarcado e já estava tendo problemas com as diferenças culturais...
Catch the frog!
Teve uma diferença cultural que foi ótima pra mim, uma brincadeira chamada caça ao sapo. Íamos com as crianças para o poço e usávamos uma rede ou a mão mesmo para pegar os sapos, girinos e salamandras. Eu, que sempre tive medo de sapo (acho que por causa da minha mãe, que sempre se esguelava quando via um), me achei ridículo tendo nojo do bichinho enquanto todas aquelas crianças trocavam carícias com eles. Mudando de saco pra mala, digo que outra diferença legal foi experimentar empanado de frango com mel e colocar chocolate granulado no meu sanduíche.
O primeiro grupo de meninos que monitorei
Na época, há exatamente quatro anos, gastei por volta de R$3.200,00 com esse intercâmbio. Considerando desde o cafezinho que tomei em Belo Horizonte quando fui fazer o passaporte, anotando as taxas de consulado e até a passagem aérea de ida e volta São Paulo – Nova York, que foi US$700,00. Pelo meu trabalho de dois meses e uma semana tomando conta dos anjinhos, recebi US$1.500,00, na época, uns R$2.500,00, mas gastei quase tudo nas três semanas seguintes ao fim do trabalho, conhecendo a região nordeste americana. Até hoje eu não conheço um programa de intercâmbio mais barato do que esse da YMCA.
Primeira noite em Nova York, na Times Square, com gente até da Tunísia.
Onze horas de voo para chegar a Nova York, ao albergue da YMCA, e conhecer gente do mundo inteiro. Cheguei a Nova York dois dias antes do que me pediram só pra dar uma voltinha pela 5ª avenida de Manhattan. “Alô, chics!”. Se eu tinha sido pobre algum dia, meu filho, a essa altura eu já nem lembrava. Na verdade, a única coisa que comprei foi uma câmera digital, que tenho até hoje e que foi bem mais barata do que se tivesse comprado no Brasil. Uma funcionária de Frost Valley (FV) foi a Nova York buscar a mim, e ainda César, Leonardo, Geoffroy e Gary, do Paraguai, Chile, França e África do Sul, respectivamente. Esses já seriam os meus melhores amigos no acampamento. Fui chegando a FV e já ficando louco e cansado daquele povo todo só falando inglês comigo 24 horas. Ainda bem que lá havia Natália e Rodolfo, dois brasileiros pra descansar um pouquinho em português, e ainda bem também que eles eram salva-vidas, então não passávamos muito tempo juntos. Senão, a tentativa de imersão em inglês seria frustrada no fim das contas. Já me bastou a frustração das duas primeiras semanas vivendo lá. Eu não entendia quase nada do que falavam comigo e pensava: "Eu passei mais de dez anos da minha vida estudando inglês... PRA QUÊ?".
No treinamento, deviam ter nos ensinado a organizar nossas gavetas.
A primeira semana foi de treinamento. Recomendações do tipo “jamais ficar sozinho com uma criança, para que não surja suspeita alguma de agressão ou pedofilia”, além de ideias de jogos, dinâmicas, brincadeiras para fazermos com eles. FV recebe crianças dos 5 aos 15 anos, além de pessoas com deficiência. Responsáveis pelos meninos de 10 e 11 anos estavávamos nós abaixo, sendo eu o único brasileiro:
Dave, Ben, Mike, Tom, Trevor, Mike, eu, Allan e Brad.
Infelizmente, não foi grande a empatia com essa turma. Jamais tivemos qualquer problema, mas, não sei se pela idade ou pela condição semelhante, minha amizade foi bem maior com os funcionários estrangeiros. Até hoje mantemos contato. Saímos várias vezes juntos, inclusive pra Nova York, nos nossos dias de folga, um por semana. Nos outros seis dias, a rotina dos monitores era:
7h45 – hasteamento de bandeira. Todos os dias, enquanto hasteavam a bandeira dos EUA, elogiavam alguém e repetiam: “Juro fidelidade à bandeira dos Estados Unidos da América e à república que ela representa – uma Nação, abaixo de Deus, indivisível e com liberdade e justiça para todos”.
8h – café da manhã. Batatas, ovos mexidos, salsichas gordurosas já chegavam chegando no estômago;
9h – Jogos esportivos, incapazes de queimar as calorias do café da manhã. Nada era;
10h30 – atividades aquáticas (natação, passeio de barco, caiaque);
12h – almoço. Cachorro quente, pizza, sanduíche de geleia de uva com amendoim e uma saladinha ali no canto, do lado da cesta de frutas. Arroz e feijão eram só uma vez na semana, normalmente quando tinha arroz não tinha feijão e vice-versa, sendo que este era meio sem sal, nenhum brasileiro iria gostar;
13h – hora do descanso. 60 minutos para as calorias impregnarem no nosso abdômen. As crianças tomavam um banhozinho (quaaando tomavam) ou se divertiam à sua maneira, tipo, atirando com uma arma de brinquedo no olho do monitor brasileiro que tomava conta deles.
14h – specialties, ou especializações: uma aula de kung-fu, fotografia, culinária, ioga – as crianças escolhiam o que fazer. Eu ministrei um curso de kung-fu por duas semanas, foi quase uma zona;
17h30 – jantar. tão calórico quanto as outras refeições;
18h – hora do descanso;
19h – atividade noturna: fogueira, festa dançante, vídeo, performance teatral;
21h – devotion: com as luzes apagadas e as crianças deitadas, conversávamos sobre quaisquer coisas que viessem à nossa cabeça, e fizesse os anjinhos sonharem com outros anjinhos.

Daí, tínhamos de esperar duas horas para ter certeza de que todos estávamos dormindo. Só às 23h podíamos sair, mas precisávamos nos recolher à 1h. Mas só dava pra ficar andando pelo acampamento mesmo, porque a cidade mais próxima, Claryville, estava a 11 km e não tinha nada. O que nos restava, além de fumar maconha e fazer sexo nos escuros arbustos? Comer sorvete! Não bastassem as gorduras hidrogenadas e trans das refeições normais, imagine, todos os dias, um balde de sorvete a sua disposição, com marshmallows, bolinhas de chocolate e cobertura! Foi por isso que engordei horrores. Americano não sabe comer bem. Talvez por isso também eles tinham uma aparência de velhos. Havia várias pessoas que eu tinha certeza de que eram uns dez anos mais velhas do que eu, mas anos depois eu viria a descobrir que eram mais novas. Várias meninas de 17 aparentavam ter 25 e isso não era uma impressão só minha. Natália e Rodolfo, os outros brasileiros que conheci lá, tinham a mesma impressão, a de que eles envelhecem rápido. Será pela alimentação ou uma característica da raça mesmo?
Falando do Brasil para as crianças americanas.
Numa noite, nós três tivemos a oportunidade de falar sobre nosso país pras crianças. Uma das atividades da turma foi um tour pelo acampamento e pelo mundo. Todos os funcionários estrangeiros fizeram uma espécie de estande em que exibiam coisas do seu país e conversavam com as crianças sobre a cultura, geografia e tudo mais. O que as crianças sabiam do Brasil é do nosso futebol, todas conheciam Ronaldo Fenômeno. E algumas até achavam que a capital era Rio de Janeiro ou Buenos Aires e que falávamos espanhol. Espero que não continuem pensando assim depois dos 15 anos de idade.
Os melhores colegas. Da esquerda pra direita, Chile, Hungria, Turquia, Brasil, Hungria, França, Colômbia, Paraguai e Colômbia.
Como você reagiria se alguém te acordasse no meio da madrugada com uma lanterna na sua cara e um biscoito na sua boca, sussurrando: “Come o biscoito! Anda! Come o biscoito!”. Era isso que nós fazíamos com os meninos que monitorávamos. As reações eram as mais diversas. E a zoação continuava no dia seguinte, quando eles nos contavam o que tinha acontecido e nós respondíamos com “Relaxa, tudo não passa de um sonho”. Na verdade, acho melhor eu desmentir isso e dizer que nunca aconteceu, mesmo que vocês descubram o vídeo que coloquei no youtube disso. O outro trote que passávamos neles na madrugada eu já não vejo problema em mostrar as imagens pra vocês. Entrávamos silenciosamente na cabana deles, e, de uma só vez, ligávamos o som no mais alto volume e piscávamos as lâmpadas, gritando, como se estivéssemos em uma boate. Desligávamos tudo de uma só vez e desaparecíamos. Isso tudo era muito pouco se comparado às brigas que tínhamos de se separar, às teimosias por não nos verem como autoridade, aos choros de “saudades da minha mãe”, aos cocôs nas calças, aos vômitos no carpete do quarto, aos atrasos pra ir pras refeições. O mesmo gostinho da vingança que sentia quando pregávamos essas peças neles, eu senti quando um vírus surgiu no acampamento. Ninguém sabia o porquê daquilo, mas várias pessoas, não somente as crianças, tinham diarreia e vômito e foram isoladas do grupo. Foram para a quarentena e passaram boa parte das férias isoladas numa outra cabana, jogando vídeo game e assistindo a filmes. Se o estado era mais crítico, ficavam na enfermaria. Eu me divertia muito em ver como os outros, os que estavam bem de saúde, ficavam paranoicos. Se alguém encostava neles, diziam em tom imperativo: “Não me toque!”. Acho que foi o terrorismo que deixou os americanos tão paranoicos com tudo. De vez em quando eu penso que o vírus no acampamento pode ter sido pela falta de higiene. Eu me sinto péssimo em dizer isto, mas admito que achei foi bom. Assim, eram menos crianças para eu cuidar. Também ajudou a criar uma proximidade com o meu grupo de crianças favorito, que vocês podem ver no vídeo abaixo.

A graça não estava só em sacanear as crianças. Nathália, Rodolfo e eu gostávamos de falar mal das pessoas que estavam ao nosso lado. Elas não entendiam português mesmo...

A única doença que me pegou foi a “Homesickness”: essa era a palavra para definir o sentimento de sentir falta de casa. Eu tentava curar passando tempo na internet, escrevendo pra minha família e amigos, vendo as fotos de quem eu tinha deixado pra trás. Normal, porque era a primeira vez que eu ficava tanto tempo longe de casa. Hoje, fico quase um ano e não sofro tanto. Relendo meus relatos, penso em como eu aproveitaria muito mais se eu repetisse essa viagem hoje. Gosto mais de ver as palavras de incentivo que recebi de volta. Copiei e colei aqui, com erros de português e tudo, os emails-resposta de três amigas:
“sempre, aqui o povo acha estranho eu passar manteiga no pao para comer, ou seja para eles o queijo substitue a margarina. para nos tem de ser margarina, queijo e o presunto OXENTE
Acham estranho eu nao comer carne crua (linguica, carne mal passada de tudo... que ate passo mal etc e tal) carne de porco crua.... mas eles ainda acham que eu nao sou normal.... quando nao comem a barra de chocolate pura, quebram (com classe) uma baguete colocam um pedaco da barra de chocolate dentro e depois levam ao microondas. fala serio. e vc que olha isso tudo sem entender nada. Minha maior vergonha foi dia que comprei um pacote de batata frita e sai na rua comendo. em menos de um minuto todo mundo que passava dizia que aquilo nao era bom. nao sabia se o tipo de batata que comprei nao era bom ou se comer ruffles nao era bom. entrei no cabelereiro com um pacote de batata na mao e ele tentou me convencer a parar de comer. A batata era minha, comi ate o fim. depois patrick explicou que aqui, batata frita, amendoin, caju sao coisas que so se bilisca com um aperitivo. nao 'e para matar a fome, muito menos nao se come com olho gordo. Rsrs. Quem disse que ruffles tem que se comer a noite? no brasil vc come batata frita toda vez que entra em um onibus, ate mesmo para ir a bh, faz parte do kit voyage. aqui ja faz 9 meses que nao como feijao. sabe que eu encontrei na feira aqui. carlinhos Brown. No brasil nunca vi o homem aqui ele balada na feira. perguntei se ele estava perdido, porque no Brasil quem ja viu Mrs. Brown na feira? euzinha aqui so dando risada, dando gracas a Deus de nao ter pago 50 euros para ver o show de Brown, o melhor mesmo foi ter encontrado ele na feira enquanto eu rasgava uma baguete seca no dente e limpava a mao na roupa.” Janilza
“Quero morar ai! Imagina! Banho dia sim dia não e escovar os dentes quase nunca!!! Amei!!! Kkkkkkkkkkkkkk” Sâmia
“Hello, forasteiro!!! Imagino sua dificuldade e bem feito, tava achando que ia ser fácil eh? Naum é novela da Globo naum, e vc naum é a Sol de América, que aprendeu inglês por osmose, táh!? Mas aqui, tenho certeza que qdo menos esperar jah vai estar entendendo tudo como se jah tivesse nascido um lord britânico!!! Mas claro, só ouvindo neh.. pq pra vc se tornar um lord vc teria q no mínimom nascer de novo! Rsrsrsrsrs. Fica com Deus aí, pq todo mundo aqui torce por vc viu!!!” Danielle
Christine, amizade que continua apesar da distância.
Quando criei este blog, era pra me sentir bem ao compartilhar das minhas viagens com meus amigos e família, mas falar de uma viagem praquela turminha e acompanhar as reações deles foi muito mais prazeroso do que escrever no Rodano mundo. Mas, no blog, é mais fácil contar as coisas. No texto A internet e a roda, Carlos Heitor Cony diz: “Embora me utilize da internet diariamente, continuo achando que ela é poluidora, não no sentido ecológico, mas espiritual. Dá informações demais, excessivas, inúteis e redundantes. Mesmo a comunicação por e-mail, que aboliu o fax, o telegrama e a carta postal, transformou-se numa correspondência cultural e afetiva maciça, e nem sempre sincera, refletida e consciente”.