"O sonho da igualdade só cresce no terreno do respeito pelas diferenças".
Augusto Cury, escritor.
Quer saber como foi minha vida de fazendeiro europeu aos 30 anos? |
O texto abaixo foi escrito há seis anos e meio, em ocasião da minha viagem ao leste europeu. Durante as cinco semanas que passei na Sérvia, tive bastante tempo livre e escrevi, a mão, como estava sendo a viagem por lá. Resolvi reler as 11 páginas agora no ano novo e achei melhor publicar o mais parecido possível com o jeito que escrevi, pois, quando fiz esse blog, pensava em poder voltar aqui anos depois, pra reler e ter um tipo de contato comigo mesmo – como eu pensava, como eu agia, como eu era anos e anos atrás. E eu tive um pouco dessa sensação enquanto reli o relato abaixo. Dividirei-o em dois textos: este, falando mais sobre a vida no interior da Sérvia, em Farkarždin, lugar tão pequeno que nem quando digito seu nome do Google eu encontro; e o do mês que vem sobre a capital, Belgrado. Digitar este relato agora foi muito legal de se fazer, porque pude perceber como era meu pensamento aos 30 anos e o que mudou ou não de lá pra cá. De vez em quando farei observações atuais e aí elas virão entre colchetes. A hospedagem e comida do tempo que passei lá foi de graça, em troca de eu fazer serviços braçais (leves) pra minha anfitriã, uma senhora de 64 anos na época, um esquema de troca de favores que descobri no site https://www.helpx.net/. Dê uma olhada depois.
Alguns serviços não foram tão leves assim. Continua lendo. |
Belgrado - Sérvia
Meu primeiro dia na Sérvia não
foi agradável. Já começou mal em Rijeka-Croácia, quando eu perdi o ônibus pra
cá. Não entendi aquilo até hoje. Eu estava esperando na plataforma que me
mandaram esperar. 30 minutos depois do horário que ele deveria ter chegado eu
resolvi perguntar no guichê. Me disseram pra não me preocupar. Era um ônibus “em
trânsito”, que vinha de Pula (Croácia) e que poderia se atrasar mesmo. 20
minutos depois eu perguntei de novo e aí me disseram que ele já tinha ido. Não
sei como ele passou na minha cara sem eu perceber. Mas eles tinham uma solução
– pagando mais 100HRK (kunas croatas = R$15,00) eu poderia embarcar num outro
ônibus que estava pra sair. Aceitei e cheguei a Belgrado quase 6h da manhã
(550km de viagem). O ônibus não tinha banheiro, mas fez duas paradas para isso
e para lanche e outra parada na fronteira Croácia-Sérvia, pra gente descer e
carimbar o passaporte.
Fronteira Croácia - Sérvia |
Ao chegar a Belgrado, Bojana
(leia-se “boiâna”) minha anfitriã, não atendia ao telefone. Comprei um cartão
pra telefone público, mas não consegui usá-lo em nenhum telefone. Liguei pra
ela do celular de um daqueles caras que ficam na rodoviária com colete
fluorescente. [Devia ser carregador de mala, não sei] Eu tinha pedido ajuda a
ele, que me ofereceu seu telefone. Como ela não atendia, mandei mensagem SMS.
Agradeci a ele pela ajuda e ele me fez um gesto indicando que eu deveria
agradecer com gorjeta. Ofereci todas as minhas moedas de kunas, porque eu
queria economizar meus dinares, dinheiro sérvio. Ele recusou as moedas e pediu
notas. Ofereci a de 10 kunas, ele recusou de novo, achando pouco, mas eu achei
que era o bastante por uma mensagem de texto (R$1,50). Ele e o amigo estavam me
pressionando tanto que eu me senti intimidado e com a obrigação de pagar pelo
favor. Praticamente me arrastaram até uma cabine de câmbio que havia ali perto
e eu troquei uma nota de EUR10,00 por dinares. Entreguei uma parte a ele, mas
ele não aceitou receber dentro da casa de câmbio e me pediu pra sair. Ofereci
pra ele não me lembro quanto agora. Ele continou dizendo que era pouco, mas aí
eu insisti na mesma quantia até ele aceitar e ir. [Talvez eu tenha dado o
correspondente a uns R$20,00. Me lembrando disso, não acreditei que eu pude ter
sido tão otário. Já devia ter deixado ele falando sozinho logo no início].
Fachada da casa onde fiquei hospedado no interior |
Em seguida, Hermín, um jovem de
uns 20 anos, se aproximou, disse que tinha visto tudo de longe e que eu não
deveria confiar naquela gente. Eu disse que achei que ele estava apenas sendo
legal, como um italiano foi comigo no aeroporto de Trieste: ao perceber que eu
não conseguia usar o telefone público, ele me ofereceu o celular e eu fiz uma
ligação de uns dez minutos para empresa aérea Lufthansa (pra Itália mesmo),
para mudar a data do meu voo de volta pro Brasil. No fim, eu perguntei a ele
quanto custava aquela ligação e ele disse que não era nada. [Nossa, aquele cara
foi um anjo mesmo]. Hermín disse que na Sérvia era diferente, as pessoas não
eram tão amigáveis como nos outros lugares e que eu jamais deveria confiar num
taxista nem naqueles caras dos coletes fluorescentes. Aí ele me emprestou seu
celular e mandamos mais uma mensagem para Bojana, avisando que eu tinha
chegado.
Uma das belezas de Farkarždin. |
Fiquei a manhã inteira sentado na
rodoviária esperando por ela sem ter a certeza de que ela tinha visto as
mensagens de celular ou o email enviado dias antes. De um posto telefônico,
liguei novamente e ela atendeu. Esperei até as 16h. A abracei, mas percebi que
ela não gostava de ser tocada. Fomos até um posto policial registrar minha
chegada ao país, pois é preciso fazer isso nas primeiras 24 horas em território
Sérvio. [Hoje em dia, o procedimento continua pra todos os estrangeiros que não
ficam hospedados em hotel. Caso você fique em um hotel, os funcionários já
fazem isso pra você – informação dada por Thiago, brasileiro que mora lá e é
dono da agência “Bem Vindo à Sérvia”] Em seguida, fomos ao apartamento onde eu
fiquei hospedado. Ali, eu recebi minha primeira tarefa. Fiquei cinco horas
limpando apenas o quarto, que, segundo ela, não estava tão sujo (!). O
apartamento, quitinete, na verdade, estava imundo. Parte da noite foi limpando
só o quarto, que era conjugado com a cozinha. Fiquei o dia seguinte todo com o
nariz escorrendo e espirrando por ter removido todo o pó. E ela ainda falou que
eu deveria ter limpado o banheiro primeiro, porque o quarto não estava tão
sujo. [Na lógica dela, fazia mais sentido o lugar onde você toma banho ser a
prioridade na limpeza e não o lugar onde você dorme] Ela não ficou no
apartamento, mas voltou pra vila, pois a casa da vila nunca podia ficar
sozinha, por causa dos bichos.
Jardineiro, minha outra função na casa. |
A Sérvia tem aproximadamente 7
milhões de habitantes, dos quais 1,5 milhão estão na capital federal, Belgrado.
A moeda é o dinar. Na época da minha visita, em junho de 2014, R$1 = EUR3,30 e
1EUR = 115RSD. Então, pra pensar o quanto eu gastava, eu dividia o preço por
100 e multiplicava por três. Era mais fácil do que dividir por 34. Por exemplo,
uma plieskavitza com uma porção de
batata fritas e uma lata de Coca custavam 300RSD. Então, eu estava gastando
R$9,00 por aquela refeição. Plieskavitza
é um sanduíche preparado à moda turca. Bom, mas mais gostosos são o burek, a
pita de espinafre e a baklava de nozes. [Aqui no Brasil mesmo são coisas fáceis
de se encontrar em restaurante árabe. Descobri depois que morei em São Paulo]
Só digo que os três são de massa folhada, como quase tudo lá. Eu quase sempre
comia em padaria (pekara em sérvio; leia-se “pêcara”) e já entrava pedindo a
baklava orah (de nozes).
Pastor da vila |
Farkarždin
Igreja católica |
No dia seguinte, pela manhã, fui
de ônibus para a pequena vila de Farkarždin (leia-se “farcárchidin”, com R tipo
em “caro” e D como em “dado”) , aprender quais seriam as minhas obrigações lá.
Ao chegar à parada, mais um imprevisto: os dizeres dos ônibus estavam em
cirílico, então eu tive de deduzir muito rápido, pelas vogais, o ônibus que
iria a Farkarždin. Acenei e confirmei com o motorista. Aí eu vi como uma pessoa
analfabeta se sente. E fiquei imaginando se teria a mesma sensação quando
visitasse a China, ou Japão, ou outro lugar que não usa o mesmo alfabeto que o
nosso. [Que delícia foi reler esse trecho, pois, cinco anos depois, em 2019, eu
estive no Japão, China, Rússia e Emirados Árabes, todos países com alfabeto que
não entendo e que me trouxeram de volta a sensação de não ser alfabetizado]
Na Sérvia, ambos os alfabetos,
cirílico e latino, são usados. As crianças começam aprendendo as letras que são
iguais nos dois; depois seguem se desenvolvendo nos dois e aí escolhem qual
usar. Na televisão, os canais usam apenas um deles. Só existe dublagem pros
desenhos animados. Tudo é legendado, até as novelas turcas, que me
surpreenderam – pareciam tão bem feitas quanto as novelas da Globo.
O alfabeto cirílico também era
terrível quando eu queria comer. Não dava pra entender nada do cardápio. Se bem
que, no início, mesmo no latino eu não entendia nada. Acabava escolhendo tudo
pelo visual mesmo, até descobrir a baklava orah, uma espécie de torta de nozes
mil folhas. Quase tudo lá é de massa folhada. Se não fossem as aulas de dança
que fiz e as longas caminhadas, eu teria engordado mais.
Cemitério em Farkarždin |
Farkarždin é uma pequena vila com menos de 2000 habitantes [a não sei quantos km de Belgrado, porque não a achei no Google Maps, mas eram menos de 2 horas de ônibus]. Lá, eu tive de alimentar os dois cachorros, dois gatos e seis galinhas duas vezes por dia; cortar a grama dos quintais da frente e do fundo; carregar um mato já meio seco do pomar para o rio. Limpar a casa não me foi pedido, mas eu não consegui evitar. Era muita imundície para uma pessoa que, contraditoriamente, sempre tinha de lavar as mãos quando chegava em casa. Ela elogiou meu trabalho, mas disse que tinha bagunçado (!) o banheiro depois de eu ter limpado e separado todos os objetos por categoria no armário. Disse que agora não conseguia achar as coisas.
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Fiz serviços de costura também. |
No meu ponto de vista, meu único
erro foi com o tapete da sala que era grande e pesado: enrolei-o levei pra
fora. Não tinha rodo, então eu o limpei com vassoura e sabão em pó e deixei
secando no sol por três dias, mas houve chuva. Então eu voltei com ele pra sala
ainda úmido, o que causou mal cheiro que não disfarçava nem com os incensos que
acendi. E algumas partes dele ficaram marrom, com aparência mais suja. Ela me
xingou horrores, porque ela tinha me explicado pra limpar com uma esponja
úmida, dentro da sala mesmo. Claro que eu ignorei porque eu não achava q seria
suficiente e eu queria tirar todo o pó daquele lugar. Daí, segundo ela, agora
eu deveria passar o paninho úmido no tapete todos os dias, até o cheiro sair.
Fiz só uma vez, porque ela estava em casa, me olhando.
Teve um dia que as crianças se ofereceram pra me ajudar |
Quando ela foi visitar sua
família em Montenegro, país vizinho, por mais de uma semana, levei o tapete pra
fora, joguei água e detergente e usei o rodo que comprei em Belgrado e que ela
falou que era um objeto de limpeza inútil, que eu poderia levar pro Brasil. O
cabo quebrou logo no começo da lavação e eu fiquei puxando aquela água de
quatro até o rodo quebrar mais. Secou no sol por dois dias, joguei vinagre e
deixei por mais um dia e coloquei na sala de novo e o cheiro saiu, mas umas
manchas continuaram. Fiz um vídeo que mostra o estado da casa, mas já estou me
sentindo culpado demais por expor uma pessoa assim. [Só publico isso pra
mostrar como existem modos totalmente diferentes de ver o mundo e que o “certo”
pra algumas pessoas não é “certo” pra outras. E isso vale pra muitos outros
conceitos relativos que teimamos em encarar de forma objetiva]
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Não me lembro do nome do que usa camisa do Brasil. Os outros são Veljko e Dusan. |
Bojana tinha um comportamento
muito contraditório. No supermercado, ela sempre pegava os produtos do fundo da
prateleira, porque os primeiros “ficam cheios de poeira levantada pelo caminhar
das pessoas”. Ao chegar em casa, ainda limpava-os com um pano e fazia várias
atividades de luva. Não andava em casa com os mesmos sapatos que usava na rua.
Não gostava que a abraçasse para tirar fotos. Ao mesmo tempo, vivia numa
imundície.
Bojana e eu na principal praça de Zrenjanin. |
Nós só dividimos o mesmo teto
três noites, porque ela deixava eu ficar em Belgrado quando ela estava em Farkarždin.
A casa de campo é que não poderia ficar vazia, por causa dos bichos. Ao mesmo
tempo em que eu a achei grossa ao falar comigo, ela tinha algumas atitudes
legais. Ela quis saber sobre o Brasil, me levou para passear em Zrenjanin
(leia-se “zreniânin”) um dia – na verdade, ela tinha de ir lá de qualquer jeito,
mas me mostrou um pouco a cidade. E ela me autorizou a colher as cerejas do seu
pomar, vendê-las na feira e ficar com o dinheiro. [Muito bom ler isso seis anos
depois, porque minha memória registrou apenas o lado ruim da pessoa; hoje pude
me lembrar do lado bom]. Vendi 6kg da cereja doce (tresnja) a 80 dinars o kg
(lucro de uns R$8,00) e só não vendi mais porque eu já tinha comido horrores
dela.
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Aproveitando a safra das cerejas. |
Na semana seguinte, a venda da
cereja azeda (visnja) foi um fracasso. Me puxei, acordando às 5h da manhã pra
colher, fui com pelo menos uns 10 kg e não vendi nada, mesmo sendo 40
dinars/kg. O povo nem experimentou. Aí fui obrigado a beber 1 litro de suco de
cereja por dia. Mesmo assim, foi bom pra eu me distrair um pouco em Farkarždin,
porque não havia nada pra fazer lá. À noite, eu assistia a Friends, Big Bang: a Teoria
e mais um filme, tudo com som original e legendas em sérvio, o que me ajudou a
aprender um pouquinho do idioma.
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Fazendo renda extra na Sérvia. |
Um dia saí andando por todas as
ruas e em três horas eu já tinha andado por tudo. Aí me envolver com as tarefas
da casa acabava sendo uma terapia. Carregar mato era repetitivo, mas eu pensava
sobre muita coisa, acabei até montando coreografia de Zumba enquanto
trabalhava. No fim da tarde, eu ia pra quadra da escola, porque o povo ficava
lá jogando futebol. Eu só arrisquei ficar no gol um dia e nunca mais. Acho que
eles devem ter ficado decepcionados com o brasileiro perna de pau. Em
compensação, nos divertimos muito na aula de palavrões em sérvio que eles me
deram. [Me lembro de vários até hoje]
Prijateljstvo: "amizade", em sérvio |