terça-feira, 1 de março de 2011

Os imigrantes

Trecho de texto de um painel no Museu do Imigrante
Depois de um ano e nove meses em Belo Horizonte, onde vivi minha primeira experiência em república e a primeira tendo uma rotina de bailarino, no Ballet Jovem Palácio das Artes, chegava a hora de partir, rumo à Companhia Municipal de Dança de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. As pessoas queridas ficaram para trás, mas a verdadeira amizade se mantém mesmo com a distância.
Mariano, Anita, eu, Ariel, Marta e Priscila
Carla, Gisele e Marden
Fernando e Helen

Ballet Jovem em Mariana-MG

Ballet Jovem a caminho do Rio de Janeiro
Mesmo tendo tido a segunda-feira inteira, 12 de setembro de 2010, para arrumar as minhas malas (sim, no plural mesmo, e eu falo de malas, não só de Soraya, minha mochilinha preta e vermelha), eu não tive tempo de comer direito antes de pegar o ônibus para o aeroporto de Confins. Ainda bem que saí às 18h30, pois cheguei ao aeroporto meia-hora mais tarde do que o esperado. Já era um sinal de que tudo se atrasaria. Mas não precisava me estressar. Eram 20h, meu voo era às 20h58. Tinha de despachar as malas. Soraya iria comigo no avião. As outras duas bolsas eu despachei e fui surpreendido pela notícia de que tinha de pagar excesso de bagagem. Eu, pagando excesso de bagagem! Já senti uma enorme fincada no bolso, imaginando de quanto seria a taxa. A franquia de peso das bagagens para viagens aéreas nacionais é de 23 quilos. O peso das minhas duas valises somadas dava 24. Um quilo de excesso, multiplicado por não sei quantos por cento de não sei o quê, resultava em 5 com 65. Até que foi barato. Imaginei o peso da bagagem dos italianos que chegavam a Caxias do Sul há mais de cem anos, para, assim como eu, começar uma nova vida! Cheguei à sala de embarque a tempo, mas a empresa atrasou. Mais um atrasozinho no carro que leva ao avião, outro atraso para decolar e saímos 25 minutos depois do esperado. No meio do vôo, uma turbulência de uns 20 minutos (já era um sinal de que eu enfrentaria outras, já em terra firme, em Caxias do Sul), mas foi levinha, nem deu tanta emoção. Prestes a aterrissar, mais turbulência, dessa vez acompanhada pelo choro de um piá da poltrona da frente se queixando de dor de ouvido devido à diferença de pressão.

Cheguei a Porto Alegre às 23h40, já muito tarde para pegar o último metrô para a rodoviária. Tive de esperar pelo próximo, que era às 5h15 da manhã. Para passar o tempo, fui a uma livraria folhear revistas e depois dormi no chão da sala de televisão, mas isso é normal. Várias pessoas faziam o mesmo e eu continuo fazendo isso até hoje. No caminho do aeroporto à rodoviária, o vento já me cortava todo, mesmo usando a jaqueta que Amanda me deu. A passagem a Caxias custou 23 pilas. Entrei no ônibus e apaguei, só acordei quando ele desligou, já em Caxias:
Vista da cidade a partir dos Pavilhôes da Festa da Uva

Monumento Jesus Terceiro Milênio, obra de Bruno Segalla
Peguei um táxi para me ajudar a levar os 30 quilos de bagagem que eu tinha até a pensão onde eu iria morar, e cuja dona me recebeu muito bem. Só tinha uma questão: eu deveria esperar um pouco, pois o cara que iria sair de um dos quartos no sábado anterior, e que estava com o pagamento atrasado, ainda estava lá, mas “de hoje ele não passa. Assim que ele sair, eu limpo o quarto e libero pra ti”. Tudo bem. O horário de trabalho da companhia é de 15h às 19h, eu aproveitaria a manhã para comprar algumas coisas de que precisava e conhecer o centro da cidade. Descobri um restaurante comunitário, com filas mil vezes menores do que os de Belo Horizonte, aparentemente mais limpo, mais barato (aqui é R$1,00, em Belo Horizonte é R$2,00), e com sala de tevê. Entretanto, não servem café da manhã nem janta, nem servem viandas.
Depois do almoço voltei para casa e a dona da pensão me diz, a queima roupa, às duas horas da tarde: “tu vai ter que arranjar outro lugar pra ficar. Não tem vaga pra tu aqui, o rapaz não quis sair”. Em vez de me desesperar, eu segui o conselho do meu mestre Roberto Justus, dado no último episódio da primeira temporada de O Aprendiz, exibido pela Rede Record no dia 23 de dezembro de 2004: “quando você encontra um momento difícil pela frente é quando você tem de ser mais sereno”. A situação era: só depois do trabalho, às 7 da noite, é que eu iria começar a procurar um lugar para morar, numa cidade em que eu mal conhecia uma dúzia de gente. Conversando com algumas pessoas da companhia, e ouvindo explicações de como chegar à rua tal, que fica depois da praça tal, numa cidade onde eu estava pela segunda vez na minha vida, eu esbocei na minha cabeça a rota para a busca de duas outras pensões, onde poderiiiia talvez quem sabe haver vagas.
Às 19h15 eu saio à caça de uma casa. Pelo menos a dona da primeira pensão me deu permissão de deixar na casa dela as minhas duas arrobas de bagagem. Uma das bailarinas, Nicole Fischer, me acompanhou até a rua onde fica a Pensão do Isaac. Chego lá, mas a previsão era de talvez sair alguém na semana seguinte. Pelo menos lá eu descobri outros dois lugares para continuar a minha busca: a pensão da Maria, com uma possível vaga só a partir do dia seguinte, e a pensão São Pedro, sem previsão de vagas e sem quarto individual. Sob uma finíssima e breve chuva que começava a cair (ainda bem que ela só começou), eu corri à minha última opção, a pensão da Maria (uma outra Maria). Disse que “precisava de um quarto pra hoje”. Acho que ela ficou receosa de ter um desconhecido à porta dela de noite, mas eu contei a minha história e ela me aceitou. E o melhor: 100 pilas mais barato que a pensão onde eu moraria. Na parede do meu quarto, a Imaculada Conceição divida espaço com a Avril Lavigne. Decidi não tira-las dali, e mantenho as duas imagens na parede até hoje. O importante é que eu tinha um lugar para dormir, que consegui em duas horas de relógio. Nada mal considerando que eu estava naquela cidade pela segunda vez, procurando casa de noite e sob o sereno. Justus estava certo quando disse que precisava manter a calma, assim como meu ídolo maior diz, em Mateus 6, 25-32:
Por isso vos digo: não estejais ansiosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer, ou pelo que haveis de beber; nem, quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestuário? Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros; e vosso pai celestial as alimenta. Não valeis vós muito mais do que elas? Ora, qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado à sua estatura? E pelo que haveis de vestir, por que andais ansiosos? Olhai para os lírios do campo, como crescem; não trabalham nem fiam; contudo vos digo que nem mesmo Salomão em toda a sua glória se vestiu como um deles. Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé? Portanto, não vos inquieteis, dizendo: que havemos de comer? Ou: que havemos de beber? Ou: com que nos havemos de vestir? (pois a todas estas coisas os gentios procuram.) Porque vosso pai celestial sabe que precisais de tudo isso.
Cheguei a Caxias numa época ótima, setembro, quando acontece o “Caxias em cena”, um festival de teatro, música e dança a preço acessível. Assisti a um show do Barbatuques e a uma peça biográfica da grande bailarina Azarada Duncan (piada com o nome de Isadora Duncan; se não entendeu, busque sobre a vida dela na internet).
Outra vantagem é que nessa época “não está frio”, me diziam, mas, pra mim, estava: tinha dia que eu saía com duas calças à noite, mais luva de couro, mais touca. E olha que era início da primavera. Os últimos minutos de ensaio da companhia, quando já era noite, começavam a ficar muito difícil. Mesmo de calça, meia e polaina, o corpo já estava frio. Trabalhar com o corpo aqui no sul, realmente não é muito gostoso, como Tíndaro Silvano uma vez falou. Comparado com aqui, o clima de BH é tribom. Agora, pra uma pessoa que fazia aula de short e sem camisa, e que cresceu acostumado com o clima de Mariana e Ouro Preto falar isso, imaginem o que seria de uma Fernanda Vieira, que acha que Nova Friburgo é o lugar mais frio do planeta Terra... Morreria, coitada! Eu guardava leite ou iogurte por quase dois dias fora da geladeira e eles não azedavam! Do fim de fevereiro até o início de dezembro é sempre bom ter um casaco em mãos.
Em um mês depois de estar trabalhando com a Cia de Dança de Caxias, eu já estava me apresentando com eles. Fizemos performances na comemoração do aniversário de nove anos do Centro de Cultura Ordovás; no bar Aristos, durante o festival de jazz; na entrada do teatro durante os três dias da mostra de dança Caxias em Movimento. Também tivemos um workshop com o grupo Strondum, de Uberlândia.
No camarim, antes de apresentação

Alguns integrantes e ex-integrantes da companhia, com o Grupo Strondum
Enquanto não conseguia um lugar para lecionar, usava meu plano b: garçom. No meu primeiro trabalho em um Buffet de festa infantil, comi tanto doce que só fui sentir fome de novo no domingo de manhã. Nem uma alaminuta me encheria tanto. O nome da aniversariante? Mariana, mesmo nome da minha cidade natal. No fim, meu plano b acabou virando plano a. Aqui, vale mais a pena ser garçom do que ser professor de inglês em cursinho. Teve uma escola que me ofereceu trabalho por R$6,00 hora/aula. Ganho quase o dobro disso na casa de festas Bambolino, e ainda como de graça e não preciso preparar nada em casa para o trabalho.
Equipe Bambolino
Outro evento que acontece na cidade nessa época é a Semana Farroupilha. Nem trabalhei no dia 20 de setembro, que é feriado estadual. Assisti apresentações de danças gaúchas de crianças e adultos e a campeonato de laçamento de boi.
Desde pequeninos os piazinhos já treinam com uma réplica do boi.

E quem não tem réplica improvisa com um banquinho:

Fui almoçar na festa e tive um prejuízo. Vi uma barraca anunciar que tinha quirela. Fiquei doido para experimentar. A mulher tentou me explicar o que era, mas não ficou muito claro. Resolvi pagar os dez pilas pra lá e comer. Quando eu fui me servir, era canjiquinha(!), uma coisa que eu comi em casa a vida inteira de graça! Pelo menos podia servir à vontade e eu comi o máximo que consegui pra tentar recuperar as dez pilas. E ela ainda veio me falar que dava pra perceber que eu não era daqui pelo meu sotaque. Até parece que eu tenho sotaque. Quem tem sotaque é eles, assim como Nalu, Caroline e Rita. Brincadeira. Depois que voltei a Minas, comecei a escutar todo mundo falando cantado também. No domingo, resolvi comer entreveiro, isso já foi mais novidade. É um prato com vários tipos de carne de boi e porco, que também pode ser servido na tábua.
A Semana Farroupilha aqui é como o nosso Dia de Minas. Entre 1835 e 1845, liderados por Bento Gonçalves, os rio-grandenses reivindicavam por mais atenção e empenho na administração do Rio Grande do Sul. Mas a sensação que tive é que aqui eles dão muito mais valor a essa data do que os mineiros dão ao Dia de Minas. As pessoas aparentam estar mais “patriotas”, e percebe-se uma atmosfera de orgulho por manter as tradições gaúchas. É voltar ao século século 19:
Desfile de apresentação da vida campeira de antigamente, na rua Sinimbu
De início, eu achava que o sentimento forte de orgulho que os sul rio-grandenses sentem pelo seu estado era uma impressão minha, mas realmente é fato. Na época da comemoração da Revolução Farroupilha um jornal noticiou um garoto que foi à escola de pilcha (típico traje gaúcho) e que a direção o mandou pra casa por não estar de uniforme. Polêmica! Várias pessoas foram contra a atitude da escola porque ela estava reprimindo o sentimento de um garoto de cultivo às tradições. E mesmo depois de passada a época de comemorações à Revolução Farroupilha, ocasionalmente a gente se esbarra com homens de bombacha (as calças típicas), com a mesma naturalidade de quem usa calças jeans. Mais do que serem brasileiros, eles são gaúchos, tchê! mesmo. Enquanto isso, nós temos vergonha de sermos mineiros, uai! quando vamos de excursão-farofa passar o Carnaval em Guarapari. Voltar dois séculos no tempo é também a sensação que tive ao visitar alguns lugares históricos daqui e uma parte da zona rural, ou da colônia, como eles dizem. A Casa de Pedra, por exemplo, é de entrada gratuita e reconstitui uma casa de família de colonizadores italianos.
Interior da Casa de Pedra
Para conhecer a parte da colonial da cidade, Caxias tem várias opções de roteiros turísticos. No roteiro Estrada do Imigrante, o Museu Casa Zinani tem o mesmo espírito da Casa de Pedra, com o diferencial de a entrada ser R$5,00, mas quem guia é um descendente italiano e o visitante pode degustar pães e sucos. Perto dali, visite a Gruta Nossa Senhora de Lourdes.
Museu Casa Zinani

Gruta Nossa Senhora de Lourdes

Cascata da gruta. Permitido banhar-se
Na Vila de Ana Rech, o principal atrativo é um presépio de mais de 40 mil rolhas, tão fascinante quanto o Pipiripau, de Belo Horizonte. E, assim como este, pode ser visitado em qualquer época do ano ao custo de R$2,00. Em uma praça de Ana Rech há também um outro presépio permanente, feito de latão.

Numa próxima postagem falarei dos roteiros do vinho. Vamos agora à parte urbana. Caxias é uma cidade em que não falta emprego. Andando pela rua veem-se vários estabelecimentos procurando por balconistas, garçons, secretárias, e, por ser referência nacional no pólo metal mecânico, as indústrias da cidade sempre buscam soldadores e pessoas da área. Grandes fábricas estão nesta região, como Tramontina, Randon e Marcopolo. Talvez por isso o custo de vida seja tão alto, achei parecido com o de Belo Horizonte, ainda mais que agora eu tive de acrescentar creme hidratante como item obrigatório da minha cesta básica. O parque da cidade tem um tipo de academia de musculação gratuita. São aparelhos de ginástica feitos de material próprio para resistir à chuva e sol constantes, e onde as pessoas podem se exercitar depois de darem uma corridinha. Há também torneiras de água quente, para os tomadores de chimarrão.
Não é playground, é academia

Em todas as ruas há coleta seletiva. Apesar de todas essas coisas que nos passam uma imagem de progresso, é uma cidade que apresenta problemas como qualquer outra, como o descaso da administração municipal pelos prédios históricos da cidade. Não é como em Mariana e Ouro Preto-MG, onde a fiação elétrica é subterrânea no centro histórico, e há uma lei que proíbe os comerciantes de poluírem as fachadas dos prédios com placas. Tentei achar um prédio que pudesse fotografar sem ter fios ou placas me atrapalhando, e só consegui um, mesmo assim é só o segundo andar.

Clube juvenil e fiação elétrica

Antigo cinema e placas de loja de móveis

Linda fachada, não acha?
Embora não seja uma cidade histórica, Caxias tem uma história bem interessante. À margem da rodovia de onde se tem uma boa vista da cidade, há um museu e monumento nacional ao imigrante, gratuitos, inaugurado na era Vargas, numa tentativa do governo de fazer as pazes com a comunidade italiana. O mesmo governo que proibiu os imigrantes italianos de falarem sua língua nativa, que usou a força do imigrante para enviar para guerra, de repente constrói um monumento NACIONAL ao imigrante. Num dos painéis, um texto dedicado à mulher.
Monumento e museu ao imigrante (entrada gratuita)
                                             
Curioso como esse é um perfil de mulher que existe até hoje, um século depois, e tenho certeza de que todos vocês conhecem pelo menos uma mulher assim, que não segue as próprias vontades, mas as dos outros. Conheça também o Museu Municipal, também de graça. Mas o Museu mais legal é o Instituto Bruno Segalla. O cara conseguiu esculpir a cara do Getúlio Vargas na cabeça de um alfinete!Enquanto finalizo essa primeira postagem, fico pensando se talvez, nas próximas, eu pareça menos empolgado. Será que já estarei acostumado a tudo que, hoje, ainda é novo, e as coisas já terão se tornado rotineiras, como num casamento? Não sei...
Beijo, me liga
Obs.: não quero humilhar ninguém, mas a mulher que tirou essa foto de mim tinha tanta noção de onde ficava a lente da câmera, tadinha, que ela só conseguiu na terceira tentativa. Veja a primeira:
Glossário do dialeto sul-rio-grandense:
5 com 65 =R$5,65.
Piá = menino
Pila = real
Restaurante comunitário = restaurante popular
1 com 50 = R$1,50
Vianda = marmita
Entreveiro (ou entrevero) = além do significado culinário, pode ser bagunça, briga.
Alaminuta = prato feito (pf), mas também leva ovo.
Tribom = bão dimais, sô.

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