segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Renascer

  

"Churchill é um grande homem. Claro que ele é nosso inimigo e sempre foi inimigo do Comunismo, mas ele é um inimigo de respeito, um inimigo bom de se ter."

Josip Broz (Tito), ex-presidente da Iugoslávia.

Parte de Belgrado vista do alto da Torre Avala

Tudo o que está relatado aqui foi escrito em julho de 2014 e os preços são daquela época. Mesmo assim talvez te ajude caso tenha chegado até aqui porque está indo visitar Belgrado, capital sérvia. Fiquei mais de um mês lá, então tenho bastante pra falar. Estou publicando agora porque nesses quase sete anos o texto ficou na gaveta (literalmente, porque foi escrito à mão). Reli em janeiro e publico aqui mais porque me senti saudoso com minhas impressões na época. Alterei muito pouco o texto original e as frases entre colchetes são observações que fiz com meu pensamento atual.

Não é prédio abandonado. Mantê-lo assim é uma escolha.
Continue lendo.

Belgrado - Sérvia

Justamente no ano do centenário da explosão da I Guerra Mundial, fui parar em Belgrado, uma cidade que foi destruída e reconstruída tantas vezes e que sabe bem o que é renascer das cinzas, literalmente. Foram mais de 115 guerras, que resultaram em 44 bombardeios. Isso não influenciou em nada, mas eu achava engraçado quando alguns conhecidos brasileiros me perguntavam se eu não tinha medo de estar indo pra uma zona de guerra. [Gente mais desinformada do que eu]

 

Os bombardeios mais recentes foram em 1999, pela OTAN - Organização do Tratado do Atlântico Norte. Foram dez semanas, de março a junho, a fim de não sei quem querer convencer a Iugoslávia a fazer não sei o quê [Gente, desculpe, continuo péssimo em história]. Então esses inimigos destruíram tudo que consideravam importante em Belgrado. Aí o governo local decidiu manter tudo assim, em ruínas, pra sensibilizar as pessoas quando elas olhassem os destroços. Só reconstruíram a Torre Avala, entre 2005 e 2007, no mesmo local da antiga, numa montanha também chamada Avala. A torre continua servindo como transmissora da rede de televisão e também é um lugar turístico, como a montanha toda: paga-se 200RSD (dinars sérvios) para entrar na torre e ver Belgrado a uma altura de 200m. Sinceramente, eu esperava mais pela vista. No resto da montanha, você pode fazer trilhas, olhar os monumentos espalhados por ela. Aos sábados e domingos, o ônibus 400 levava até o alto. Nos outros dias, você precisa pegar o 401, 402 ou 403, descer no pé da montanha e subir tudo a pé, mas é tranquilo. Eu caminhei só por meia hora. [Fiquei até curioso agora pra saber se os ônibus continuam os mesmos]

Torre Avala


Apresentação artística na Fortaleza.

O maior museu de Belgrado é a Fortaleza no Parque Kalemegdan. Como todo parque da cidade, o Kalemegdan tem bustos de várias personalidades da história sérvia. Eu reservava um dia inteiro pra esse complexo porque realmente tem muito pra se fazer lá. Tem gente que até pratica escalada nas paredes da própria fortaleza mesmo. Tem duas igrejas, mas não sei se você terá sorte de encontra-las abertas. Eu não tive. Em compensação, nas três visitas que fiz ao local, uma vez eu fui surpreendido por um cortejo folclórico que cantava músicas típicas e, outra vez, cheguei bem na hora de um recital de crianças que cantaram, dançaram e declamaram poesia. Há um pavilhão cultural, com exposição de artes visuais e um café. Há um museu com uma exposição de biologia, mas eu não quis pagar 200RSD (R$6,00) pra vê-la. A entrada pro Museu Militar é mais barata – 150RSD, mas eu não paguei nada porque não vi ninguém cobrando, talvez por ser domingo. Só que as descrições dos objetos estavam em sérvio, então eu não gastei nem uma hora dentro dele. O mais legal mesmo está do lado de fora, na área gratuita desse museu, a exposição dos tanques de guerra. Por mais 120RSD dá pra se conhecer um poço de água. Se quiser, você não gasta nem dez minutos lá dentro. É só olhar pros 60m abaixo num poço e pronto. Mesmo assim, a sensação de olhar pra baixo naquele buraco com profundidade de mais de dez andares, jogar uma moeda (de baixo valor, lógico) e esperar pela demora do som dela tocando a água é muito boa.



Alguns aproveitam o espaço para escalar;...
...outros, para se casar.

Aí, quando você sai do poço, tome cuidado com os lugares onde você entra. Tem paredões dizendo “Andar nessa área é por sua conta e risco”. Claro que eu entrei mesmo assim; e não aconteceu nada. Ainda dentro desse parque da fortaleza, pagam-se 200RSD pra entrar na Nbojsa Tower, que não chega a ser uma torre; tem só três andares, mas a exposição é interessante. O Museu da História da Sérvia é outro ponto desse grande complexo e também custa 200RSD. Sua exposição não é permanente. O único incômodo que tive no local foi com o zoológico, na parte baixa do parque. As jaulas são muito pequenas pros bichos. Algumas alas, como a dos macacos, passam a impressão de que eles são bichos de laboratório: espaço apertado, expressão triste e cheiro forte. Ingresso a 400RSD.

Flagra picante no zoológico.
Encontro dos rios Sava e Danúbio.

Se, durante toda essa maratona de atrações do Parque Kalemegdan, você se cansar, é só sentar e apreciar a vista. A Fortaleza está num lugar lindo, na confluência dos rios Sava e Danúbio. Claro que sua construção foi muito mais pensando em estratégia de guerra do que em estética. Desse jeito, podia-se avistar os inimigos que vinham pelos dois lados. Mas a parte mais interessante mesmo da fortaleza eu conheci durante o Underground Tour (passeio subterrâneo), oferecido pela agência www.go2serbia.net. Num passeio de duas horas, conhecemos encanamentos antigos, esconderijos, sarcófagos e muito mais da história de Belgrado, em lugares que só as agências autorizadas têm acesso. Eu recomendaria um dia inteiro dedicado a essa parte. Tem vários cafés e lanchonetes no parque pra você recuperar a energia entre os passeios e também várias barraquinhas de lembrancinhas. Pechinche sempre. Eu perguntei o preço de um boné e o vendedor disse 800RSD. Eu me fiz de desinteressado e saí andando. Ele gritou 700RSD. Eu voltei e peguei. [Hoje acho que ainda fui burro. Devia ter pedido 600RSD].

Kalemegdan Park também é conhecida como...
...Belgrade Fortress - a Fortaleza de Belgrado.


Fortaleza

Caso seu tempo for muito diferente do meu e você fazer todo esse passeio pela fortaleza em apenas meio dia, termine visitando as lojas e galerias de arte do calçadão à frente do parque. Se você fala inglês, pode também fazer um tour gratuito de bonde (tram) pela cidade. Eles saíam toda sexta e sábado no fim do dia, da estação de tram perto do zoológico. É melhor você confirmar o horário na central de informação turística principal, no calçadão. A realidade costuma ser diferente daquilo que eles imprimem nos folhetos.

Belgrado tem ainda muito verde pra você ver, entre parques, praças, mais a arborização de algumas estradas e avenidas. Além de serem locais pra se descansar, tomar um café e respirar bom ar, dá sempre pra aprender um pouco mais da história. Karadjordje Park está hoje no local de um antigo acampamento armado liderado por um tal Karadjordje em 1806, líder da primeira insurreição sérvia. [Sei lá o que isso quer dizer... Não sou bom em história. Já disse] Corpos de rebeldes que atacaram a fortaleza estão enterrados nesse parque. O local é a primeira área verde planejada de Belgrado.






A Catedral de São Sava...
... está ao lado da Biblioteca Nacional...


... e vive em reforma.

No Karadjordje ainda está a Biblioteca Nacional, onde eu não encontrei nenhum livro de literatura brasileira – como o mundo todo conhece Paulo Coelho, eu esperava encontrar algo do Brasil. Ao lado, o templo St. Sava, ainda em construção, mas que já é uma das maiores igrejas ortodoxas do mundo. [Em 2021 já deve ter terminado, né, gente? Não é possível...] A maioria da população sérvia é ortodoxa. Ao entrar em alguma das várias igrejas da cidade, talvez você tenha a sorte de ver algum casamento. Eu vi três. Mas o povo não gosta que a gente entre de bermuda na igreja. Em alguns, não gostam que tire fotos. Me olharam de cara feia e até me pediram pra sair uma vez. Minha tática é bancar o desavizado sempre e já entrar tirando alguma foto. [Na verdade, essa ERA a minha tática. Desde 2019, me pergunto se minha foto ou vídeo está colocando a pessoa numa situação desconfortável] Os templos não têm banco e alguns têm o chão coberto de ramos. As pinturas são bem coloridas e com bastante informação. Pensando bem, as que temos no Brasil também, né? A diferença é que nosso olhar, no Brasil, está mais acostumado.

Entrei na igreja bem na hora do casamento.

Uma outra área onde se pode gastar um dia todo é a composta pelo Topciderski Park e o Hajd Park, um ao lado do outro. Este parece mais uma floresta, enquanto o outro possui monumentos, jardins e restaurantes. Ao lado do Hajd, está o Museu da História Iugoslávia, composta por três prédios: o do museu velho tem uma coleção etnográfica de mais de 4.000 itens culturais da antiga Iugoslávia e de outros países também – tapetes, armas, toalhas e vestimentas antigas de várias partes do mundo. A Casa das Flores não tem nada a ver com seu nome – é a antiga residência de Josip Tito Boroz, um cara importantíssimo pra história do país. Pra alguns sérvios, uma das figuras mais importantes da história mundial. Oito cidades levam o nome dele e seu retrato está nas salas de aula das escolas. Seus objetos pessoais ficam em exposição. Seu corpo e o de sua mulher estão enterrados no local. [Hoje, já não tenho certeza se uma pessoa tão egocêntrica e meio que “adorada” tenha sido tão bom assim. Isso tá me parecendo mais aquelas atitudes exageradas de ditadores]




A Casa das Flores é, na verdade um museu...
...onde estão enterrados o ditador Tito e sua esposa.

O Museu 25 de Maio está ao lado do Mausoléu de Tito. Se sobrar tempo, o Museu de Arte Africana está ali perto e o ingresso custava 200RSD. O Jardim Botânico funciona todos os dias, mas estava fechado quando eu estive lá. E também o Museu de Arte Contemporânea, que fica no Friendship Park, que tem árvores plantadas por Ghandi, Rainha Elizabeth, Margaret Thatcher e outros, durante a Primeira Conferência de Chefes de Estado dos Países Não Aliados, em 1961. De lá pra cá, a história mudou muito, mas as árvores estão lá pra lembrar da época em que a Iugoslávia tinha um papel importante entre os países não-aliados. [aliados a quem? Continuo sem saber. Só sei que a Ioguslávia morreu e renasceu como Bósnia, Croácia, Eslovênia, Kosovo, Montenegro e Sérvia]

Ada...
...Ciganljia.

O Tasmajdan é um parque construído sobre um cemitério, assim como o Studentski Park. A mais frequentada de todas essas áreas verdes é Ada Cinganlija, a “praia” de Belgrado. É um grande lago, na verdade, rodeado por vários tipos de quiosques, cafés e restaurantes. Não tem areia, é uma “praia de pedra”. Além de tomar banho de sol e nadar, as pessoas correm, andam de bicicletas e patins e até de “trenzinho”. A circunferência do lago é de uns 8km, então é espaço suficiente pra se exercitar. Já a circunferência da ilha eu não consegui descobrir. Não tente fazer como eu, que quis contornar a ilha toda. Do nada a estrada acabou e tive de voltar tudo sob um sol escaldante. Tem área de nudistas também. Depois das 19h30, muitos cafés já estão fechados, embora o sol só desapareça mesmo às 21h no verão. Mas os pernilongos já estão muito nervosos nessa hora. [E eram mesmo. Fiquei até mais tarde um dia e sofri]

Durante passeio de barco....

...observei outros tipos de moradia.

Essa caminhada toda te deixará com muita sede, mas a água de Belgrado é potável. Então, dá pra beber direto da torneira sem problema, o que é uma maravilha quando viajo porque detesto gastar dinheiro com água. Tem ainda as várias fontes dos parques. Se não for potável, haverá um aviso. Infelizmente eu só vi esse depois de ter tomado um baita gole.

Água potável na maioria das fontes.

Pedir informação algumas vezes era frustrante. Não é todo mundo que fala inglês, mas eu não tenho o direito de me queixar. Eu era o de fora, era minha obrigação falar a língua deles e não cobrar que eles falassem alguma das minhas. [De um lado foi bom, porque me forçou a aprender algo, a entender um pouco o alfabeto cirílico e eu ainda me lembro de muitas palavras em sérvio-croata] Mas claro que ainda não foi o suficiente. Nem se fosse uma língua fácil eu conseguiria chegar lá fluente dentro dos dois meses apenas que tive para me preparar. Por outro lado, se o nativo não está preparada para conversar com um turista, pode acabar no prejuízo. Na feira, eu perguntei o preço de um produto para uma mulher. Depois de falar devagar e fazer algumas mímicas e ela não me entender, desisti e comprei a mesma coisa na barraca ao lado. Teve uma outra ocasião em que pedi informação e o cara, levemente bêbado, aproveitou pra desabafar. Ele disse que os sérvios só se importam com dinheiro, mas que destrata o próprio povo; que eles só tratam bem os turistas porque estes podem acabar dando alguma grana.

Lá é normal estacionar carro na calçada. Tem espaço reservado pra isso.

Eu achei uma cidade muito barata. Quando se fala em Europa, a gente sempre acha que será o olho da cara, mas a Sérvia e a Croácia, pelo menos, não são. Mas também as pessoas têm um salário miserável. Conversei com os funcionários do Museu de Ciência e Tecnologia e eles faziam turnos de 12 horas por dia, dia sim dia não, por EUR200 por mês, uns R$700,00 [em 2014]. Acho que, por isso, quase todo mundo dá o golpe na hora de pegar o ônibus. É assim: não existe cobrador. Ao lado das portas, tem um leitor de cartão. A gente precisa registrar a viagem quando entra. Eu já tinha percebido que muita gente entrava e não pagava e eu ficava imaginando o porquê – talvez estudantes, talvez idosos... Aí os caras do museu me explicaram que as pessoas não têm dinheiro e, como a fiscalização é falha, me encorajaram a fazer o mesmo. E foi o que fiz, mesmo a passagem sendo barata – 72RSD (R$2,00) se comprasse num quiosque perto de quase todos os pontos de ônibus ou 125RSD (quase R$4,00) se comprasse com o motorista no ônibus. Aí um dia a fiscal resolveu aparecer. Me multou em 1000RSD (R$30,00). Então eu paguei muito mais do que a economia que tinha feito. Depois um cara me falou que eu não precisava ter pegado. A fiscal me daria um papel pra eu pagar depois e era só eu jogar o papel fora. [Nesse tipo de coisa, na malandragem, pra ser mais claro, e também no jeito espontâneo e amigável achei o povo sérvio parecido com o povo brasileiro] Aí eu fiquei mais esperto. Não pagava, mas me posicionava com o cartão na mão ao lado do leitor. Se eu visse o fiscal entrando, registrava rapidamente a viagem. No fundo, eu me sentia um pouco culpado por fazer isso, porque parecia que eu estava roubando dinheiro de uma nação, estava tirando vantagem de uma coisa que eu não sentia como sendo minha, mas, como a viagem duraria três meses, e eu ainda estava no primeiro, eu precisava economizar o máximo que conseguisse no início. [Fico com um pouco de vergonha de admitir isso hoje]

Nem tudo era barato. Preço das Havaianas na Sérvia em 2014: R$80,00.

E depois de conversar com os dois funcionários do Museu de Ciência e Tecnologia que corromperam meu caráter, entrei no prédio, vi todo o material de dentista usado antigamente e senti um grande alívio por viver no século XXI. Entrada: 200RSD e você visita as duas unidades do museu, sendo uma num prédio onde era um hospital. A outra unidade é um pouco mais interativa e você brinca enquanto aprende.

Museu de Ciência e Tecnologia.

Mas vi apresentações gratuitas no
meio da rua também.


No Teatro Nacional também não dá pra entrar de bermudas ou regata, mas pelo menos os preços são bons. Paguei 200RSD por cada balé ou ópera. Dá pra economizar assim: compre o ingresso da galeria 3, que é bem ruim; vá pra plateia baixa ou galeria 1 e peça pras recepcionistas te encaixarem em algum lugar, caso sobre.

Curiosidades locais que aprendi com uma guia de turismo: como você chegou ao bar em duas pernas, então você precisa tomar dois shots. Em inglês poderia dizer que Belgrado é awesome (incrível), mas o som dessa palavra é o mesmo do número oito. Aí o povo faz piada e responde uma coisa que é meio um palavrão, mas eu me esqueci. 

Senso de humor sérvio. Ou universal?
Já vi dessa piada no Brasil também.























Marca de sabão em pó, R$18,00 o quilo. Amém?